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A mobilidade urbana compreende a interação de diferentes fatores relacionados ao funcionamento da cidade. Esses fatores quando submetidos a adversidades podem apresentar prejuízo ao seu funcionamento (Lara, Pfaffenbichler e Silva, 2023). Nesse contexto, surge a discussão da resiliência que é a capacidade de um sistema de persistir, adaptar, transformar-se, recuperar-se e absorver impactos (Gaitanidou, Tsami e Bekiaris, 2017), frente a ameaças internas ou externas, apresentando-se como uma maneira de avaliação de sistemas complexos em que existem interações dinâmicas de diferentes escalas e fatores (Fernandes et al., 2017).
O conceito de resiliência foi primeiramente utilizado para materiais e peças de máquinas de construção por Thurston (1874) com o objetivo de verificar suas propriedades e durabilidade. Para ele, a resiliência poderia ser medida através do produto da força média exercida e a distância atuante na ruptura.
Bruneau (2003) traz o conceito da resiliência relacionando o nível de performance de um sistema ao tempo de recuperação diante de uma ameaça. O autor indica ainda a influência do conhecimento prévio de adversidades possíveis e da tomada de decisão na mitigação da perda de performance e diminuição do tempo de recuperação. Para mais, mesmo com tais ações, ele também destaca a possibilidade de o nível de performance não retornar ao anterior ao evento adverso. A Figura 1, conhecida como o “Triângulo da Resiliência”, traz a ilustração do vínculo entre essas duas variáveis.
As crises de saúde pública são um exemplo de ameaça que trazem prejuízo ao funcionamento da cidade e de seus sistemas, como foi o caso da pandemia do COVID-19. Para além das questões diretamente relacionadas ao contágio da doença, houve prejuízo a mobilidade com a restrição de viagens consideradas não essenciais, bloqueios sanitários nos acessos as cidades, limitações na oferta de transporte etc. A partir dessas medidas, a população precisou readequar seu modo de vida incluindo a maneira como se deslocava. Mesmo com o fim da pandemia, muitos dos padrões de comportamento advindos desse período se mantiveram e impactam a mobilidade até hoje.
Dessa forma, o objetivo deste trabalho é entender o impacto das mudanças no padrão de deslocamento e comportamento da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro no setor de transporte por ônibus no período pós pandemia. Para isso, foi feita uma análise dos dados de bilhetagem eletrônica do sistema nos períodos antes, durante e depois da pandemia, além da realização de um questionário para entender o motivo do não retomada da demanda de passageiros em 2023.
Figura 1: Triângulo da Resiliência. Fonte: Adaptado de Bruneau, 2013.
DIAGNÓSTICO, PROPOSIÇÕES E RESULTADOS Devido as políticas públicas implementadas e as mudanças de hábito da população para frear a disseminação do vírus do COVID-19 a partir de março de 2020, o setor de transporte enfrentou uma perda repentina em sua demanda de passageiros que já era tendência dos anos anteriores. O sistema de ônibus da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, por exemplo, que em abril de 2019 tinha uma média mensal de 150 milhões de validações do sistema municipal e intermunicipal, viu seu nível de performance cair para 40 milhões em abril de 2020, representando uma queda de cerca de 73%. Esse número acompanhou o índice nacional de queda que girou em torno de 80% (NTU, 2023).
Embora a pandemia do COVID-19 tenha se encerrado, o setor de transporte por ônibus não conseguiu retornar aos níveis esperados para o ano de 2023. Ao analisar a demanda de abril de 2023 em comparação com o mesmo período de 2019, acompanhando a tendência de diminuição da demanda de 5% a cada ano, o número de passageiros deveria estar em torno de 122 milhões, acima das 108 milhões de transações obtidas em abril de 2023. Dessa forma, mesmo considerando a tendência de queda do número de passageiros dos últimos anos, houve uma parcela de clientes (14 milhões) que não retornaram ao sistema de ônibus. A Figura 2 mostra um esquema com os comparativos entre o número de passageiros dos períodos citados em alusão ao triângulo da resiliência.
Para entender aspectos relevantes sobre fuga de demanda do sistema de ônibus após a pandemia, foi realizada uma pesquisa durante os meses de junho, julho e agosto de 2023, tanto na modalidade digital quanto presencial. Para a pesquisa online, foi disponibilizado um link de acesso ao questionário nas redes sociais da Semove e de parceiros e para a pesquisa em campo, foram escolhidos 5 pontos focais de grande movimentação de pessoas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sendo elas as áreas centrais das cidades do Rio de janeiro, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Niterói e o centro comercial de São Gonçalo, no bairro de Alcântara.
Figura 2: Evolução do número de passageiros de abril (2019 – 2023).
Fonte: Elaboração própria, 2023.
Ao todo foram obtidas 1248 respostas sendo 1207 válidas, ou seja, de participantes que responderam que utilizavam ônibus atualmente e/ou no período anterior à pandemia do COVID-19 e que residiam na RMRJ. Dessa forma, foi atingida um grau de confiança de 99% e uma margem de erro de 3,8%, considerando a população da RMRJ de aproximadamente 13,1 milhões. Em relação a abrangência das respostas, foram ouvidos representantes de 21 dos 22 municípios da Região (exceto Petrópolis por possuir características bem distintas aos demais municípios) conforme Figura 3. As respostas não válidas foram consideradas apenas para entender o motivo da não aderência ao serviço de ônibus.
Figura 3: Quantitativo de participantes por cidade de origem
Em relação a faixa salarial dos entrevistados, dado que será utilizado em algumas análises, a distribuição foi semelhante a proporção da população da RMRJ com mais de 60% ganhando até 2 salários mínimos. A distribuição das outras rendas pode ser observada na Figura 4.
Figura 4: Faixa salarial dos entrevistados Fonte: Elaboração própria, 2023.
Quando questionados sobre a mudança ou não do padrão de viagens em relação ao período anterior à pandemia, 316 participantes informaram que houve algum tipo de alteração em seu deslocamento (26% do total). Dentre as principais causas, destacam-se: “Mudança do local de destino” com 28%, “Mudança do local de residência” com 15% e “Adoção do regime híbrido” com 14%. Os outros motivos e suas respectivas porcentagens podem ser observadas na Figura 5.
Figura 5: Causas para a mudança no padrão de viagens pós pandemia.
Destaca-se que com a pandemia, o modelo de remuneração do transporte coletivo por ônibus baseado apenas na tarifa paga pelos usuários se mostrou insustentável. Para que os operadores consigam oferecer um serviço de qualidade, alinhado às expectativas dos clientes é essencial que o poder público subsidie ao menos parte da tarifa (Rodrigues et al., 2021). Com isso, o sistema volta a ser mais competitivo e o fator custo pode ser mais determinante na escolha do cliente. Dentre os que declaram aderência ao sistema de ônibus nos dois períodos, quase 80% declarou utilizar o sistema de ônibus antes da pandemia pelo menos 5 vezes por semana enquanto que para o período posterior o número foi de aproximadamente 70%. Além disso, houve um crescimento das frequências de 1 a 3 vezes na semana, o que pode indicar o aumento das modalidades híbridas e a distância de trabalho e realização de outras atividades. No total, aproximadamente 15% dos entrevistados relataram uma diminuição da frequência de deslocamento. A Figura 6 mostra o comparativo entre as distribuições de frequência de utilização do sistema de ônibus antes e depois da pandemia.
Figura 6: Comparativo das frequências de deslocamento por ônibus.
Quando correlacionada a renda dos entrevistados, é possível perceber que houve uma maior redução da frequência dos deslocamentos nas maiores faixas salariais. 32% dos que declararam receber pelo menos 5 salários mínimos por mês diminuíram a quantidade semanal de deslocamentos enquanto que para o que recebem menos o índice foi de 12%. Esse dado mostra a maior aderência de ocupações com maiores faixas salariais aos regimes híbridos e home office.
Sobre a permanência dos entrevistados no sistema de ônibus após a pandemia (94% do total), com a possibilidade de indicar apenas um item, 50% declararam não possuir outro modo de transporte disponível, sendo principalmente formado por pessoas com renda de até 5 salários mínimos. Esse indicador mostra a importância deste modo de transporte na manutenção dos níveis de mobilidade da RMRJ e por consequência, da necessidade de ofertar um bom serviço. O segundo ponto destacado foi o menor custo em relação a outros modos (36%). Outros motivos não tiveram tanta expressividade e podem ser observados na Figura 7.
Figura 7: Motivos para a permanência no sistema de ônibus
Ao considerar a amostra de pessoas que utilizavam ônibus antes da pandemia em pelo menos um dos trechos do seu deslocamento, 6% informaram que não utilizam mais o modo de transporte atualmente. Desses, 37% migraram para o veículo particular, 26% para o Metrô e 22% para o transporte por aplicativo. Outros modos, entre eles carona, bicicleta, trem, barcas e a pé somam 15% de acordo com a Figura 8. A migração para os veículos particulares e transporte por aplicativo representam uma perda nos índices de sustentabilidade pois representam deslocamentos de maior impacto ambiental e viário.
Figura 8: Motivos para a migração modal Fonte: Elaboração própria, 2023.
Dentre os motivos para a migração modal, destacam-se o tempo de espera no ponto de ônibus, falta de conforto físico (lotação, assentos etc.), falta de segurança pública (roubos, furtos etc.), tempo de viagem e falta de confiabilidade (atrasos na operação). Esses pontos e outros com as devidas porcentagens estão ilustradas na Figura 9.
Figura 9: Motivos para a migração modal Fonte: Elaboração própria, 2023.
A partir das deficiências apontadas pelo público, é possível pensar em ações de melhoria (Quadro 1) com o objetivo de tornar o transporte por ônibus mais competitivo e assim, tentar retomar a demanda perdida para outros modos, principalmente de opções menos sustentáveis como elencadas no Quadro 1. Além disso, com o aumento da qualidade da oferta, há uma maior fidelização do cliente, contribuindo para o manutenção da demanda de passageiros.
Quadro 1: Sugestão de melhorias para o sistema segundo sua deficiência
A revisão da frequência das linhas seria importante pois durante a pandemia os sistemas de transporte precisaram atender às limitações operacionais com o intuito de reduzir a transmissão do vírus. É possível que para algumas linhas e serviços, a oferta não tenha sido atualizada segundo os novos padrões de demanda. Há a necessidade de novos estudos em parceria com os poderes concedentes considerando a demanda atual para que haja um replanejamento não apenas da programação da oferta, mas mesmo das linhas de desejo dos passageiros e necessidade de atendimento da demanda. Um esforço conjunto de investimento em melhoria da frota, possivelmente também faria com que o nível de qualidade percebida pelo passageiro aumentasse.
Outra sugestão é a priorização dos ônibus no sistema viário que está relacionada ao Art. 5º da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/12) que prevê a justa distribuição dos ônus e benefícios decorrentes do uso de diferentes modos e serviços. Dessa forma, a criação de faixas preferenciais, por exemplo, traria um aumento da velocidade operacional e seria uma forma de promover um modo de transporte mais sustentável (Brasil, 2012).
As ações relacionadas a falta de segurança pública são necessárias para atender as urgências relacionadas a violência urbana e de gênero que acontecem no cenário do transporte e afetam os deslocamentos da região. Apesar de não ser uma atribuição direta das operadoras, é possível que hajam parcerias com os órgãos responsáveis para assegurar o bem-estar dos passageiros. Iniciativas como a que já ocorre, por exemplo, com o Disque Denúncia devem ser incentivadas, ampliadas e divulgadas para que o cliente tenha a possibilidade de realizar denúncias anônimas e contribuir para a melhoria da qualidade do serviço.
CONCLUSÕES Com a análise das respostas do questionário é possível entender que houve uma mudança considerável no padrão de deslocamento das pessoas após a pandemia, fato esse que prejudicou a retomada dos níveis de demanda de passageiros. Os dois principais motivos para esse cenário foram a redução da frequência de deslocamentos, principalmente por conta da adoção do regime híbrido e home office, e a migração modal.
Em relação à diminuição da frequência de deslocamentos, não existe gerência do setor de transporte por ônibus sobre esse novo modelo de trabalho fazendo com que o foco para esses clientes seja o de fidelização para os dias em que ainda se deslocam. Vale destacar que ao se deslocar menos, os gastos mensais com transporte diminuem e podem fazer com que as pessoas passem a considerar os modos privados de deslocamento (como os sistemas de transporte por aplicativos), principalmente das faixas salariais mais altas.
Sobre a migração modal, a saída do setor de transporte por ônibus para opções como carro, moto, aplicativos e carona representa uma perda nos níveis de sustentabilidade e promovem um prejuízo em cadeia para a mobilidade da região. Para os dois motivos, os investimentos na qualidade da oferta podem auxiliar no aumento da competitividade do modo em questão. Para isso, foi apresentado o Quadro 1 com sugestões de melhoria dos principais pontos destacados pelos participantes.
Outro ponto que justifica o zelo pela qualidade da oferta é que 50% dos entrevistados que utilizam ônibus não teriam outra opção de deslocamento viável. Esse dado também reforça o papel crucial do sistema na manutenção da mobilidade das cidades da RMRJ pois em muitas delas não existe outro sistema de transporte público regulamentado e quando existe, não atende a toda a população.
Nessa discussão ainda, é necessário destacar as dificuldades que o setor vem enfrentando mesmo antes da pandemia. Com o aumento dos preços dos insumos operacionais e a diminuição da quantidade de passageiros, é inviável o financiamento do transporte apenas com o aporte proveniente da arrecadação tarifária. Desse modo, a iniciativa pública deve assegurar o equilíbrio econômico-financeiro do sistema através de outras soluções como é o caso do subsídio e com outras soluções por meio de novos modelos de contratação que assim, ele tenha resiliência para enfrentar externalidades e desempenhar sua função de importância na mobilidade urbana da RMRJ.
Artigo escrito por Rafael Ribeiro Falcão da Silva; Eunice Horácio de Souza de Barros Teixeira Rodrigues; Richele Cabral Gonçalves.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES URBANOS (NTU). Os grandes números da mobilidade urbana: cenário nacional. 2021. Disponível em: <https://www.ntu.org.br/novo/ckfinder/userfiles/files/NTUGrandes%20n%C3%BAmeros %20do%20setor%20v10_6.pdf>.
BRASIL, Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012. Institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana; revoga dispositivos dos Decretos-Leis nos 3.326, de 3 de junho de 1941, e 5.405, de 13 de abril de 1943, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e das Leis nos 5.917, de 10 de setembro de 1973, e 6.261, de 14 de novembro de 1975; e dá outras providências, Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 de janeiro de 2012.
BRUNEAU, M. et al. A framework to quantitatively assess and enhance the seismic resilience of communities. Earthquake spectra, v. 19, n. 4, p. 733–752, 2003. FERNANDES, V. A.; ROTHFUSS, R.; HOCHSCHILD, V.; RIBEIRO, W. Resiliência da mobilidade urbana: uma proposta conceitual e de sistematização. Transportes, v. 25, n. 2, p. 1–15, 2017.
GAITANIDOU, E.; TSAMI, M.; BEKIARIS, E. A review of resilience management application tools in the transport sector. Transportation Research Procedia, v. 24, p. 235–240, 2017.
LARA, D. V. R.; PFAFFENBICHLER, P.; SILVA, A. N. R. Modeling the resilience of urban mobility when exposed to the COVID-19 pandemic: A qualitative system dynamics approach. Sustainable Cities and Society, v. 91, p. 1-14, 2023.
RODRIGUES, E. H. S. B. T. DIAS, L. A.; MIRANDA, J. V. C. GONÇALVES, R. C. Pesquisa de escuta: Uso de ônibus antes e durante a pandemia da COVID-19. Revista Projectus, v.6, n.1, p.21-32, 2021.
THURSTON, R. H. On the strength, elasticity, ductility and resilience of materials of machine construction. Journal of the Franklin Institute, v.97, n. 4, p. 273–288, 1874.
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